QUE OS DEUSES PERMITAM

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FOTO: BRUNO CANTINI/ATLÉTICO

Estranhos rituais surgem no futebol e seguem geração após geração. A placa no estádio para relembrar um gol antológico, a camisa imortalizada para representar a importância de um atleta na instituição, a exigência de estátuas para craques do passado são alguns desses rituais nesse esporte que leva tradição a sério. O jogo de despedida está nessa lista de itens a serem cumpridos quando o ídolo pendura as chuteiras e a torcida não consegue superar a decisão. O gostinho de quero mais permanece e a festa é uma possibilidade de rever outros jogadores que marcaram gerações ao lado da estrela principal.

No Galo, posso falar apenas do período em que vivi. Por anos, compramos a briga de que Marques merecia um jogo de despedida após a conturbada saída do clube em 2010. Nem mesmo o surgimento de grandes ídolos entre 2012 e 2014 nos fez esquecer a ideia de que o Calango deveria ter um último encontro com a Massa. Ele não aconteceu, mas a grande imagem de Marques no Galo marcando o gol do título no estadual 2010 e erguendo a camisa 9 na bandeirinha diante de um Mineirão lotado é épica.

Creio que exista um imenso conflito no sobrenatural do esporte, pois percebo que deuses do futebol sempre nos desafiaram nesses eventos de despedida, principalmente quando envolvia outros deuses do futebol. Em 2014, Galo e Lanus se enfrentavam valendo a taça da Recopa. Aos 19 minutos do segundo tempo, um dos maiores jogadores da história é substituído e deixa gramado do Mineirão caminhando rumo ao vestiário. Ronaldo de Assis Moreira já havia escutado “fica, Ronaldinho” em outras ocasiões e optado por permanecer nessas montanhas. Porém, dessa vez, saiu sem que ninguém percebesse, sumiu como mágica de um bruxo. Quase seis anos depois, nós ainda esperamos pelo dia que o mar de braços anunciará no Mineirão que Ronaldinho é um terror. Erramos muito nesse período, nós e ele, adiamos o encontro, mas ele ainda virá.

Sempre tive a teoria de que o torcedor prioriza a despedida de quem driblou, chutou e balançou as redes com mais frequência. A impressão é que goleiros e zagueiros sofreram durante a vida, já estão acostumados com a rotina de crucificação diária, não sentiriam falta das palmas e abraços quando a carreira chega no fim da linha. Um dos maiores jogadores da história do Clube Atlético Mineiro pendurou as chuteiras em dezembro e nós ainda não percebemos o quão gigante foi Leonardo Silva.

Leo nunca precisou de frases emblemáticas repetidas pelas ruas, não buscou variar penteados em ações de marketing, “patentear” um número de camisa, sequer tinha um grito próprio da arquibancada no anúncio da escalação e não teve comemorações planejadas. Talvez por isso eu tenha me identificado tanto. Quando marcou o gol mais importante da nossa história, só explodiu e, como todo o Mineirão, correu balançando os braços e batendo no escudo do Galo. Mesmo aos 41 do segundo tempo, encontrou forças para gritar do fundo da alma. O grito de um libertado.

Quis o destino que fosse quem já esteve do outro lado. O lado errado da cidade. Se não gosta das nossas despedidas, os deuses do futebol compensam ao caprichar no desenrolar da história com roteiros fantásticos. Aliás, em 2014, coube a Leo erguer a taça da Copa do Brasil como desfecho de um roteiro perfeito em viradas épicas. Na final, um adversário que Leo conhecia bem. Tão bem que optou pelo preto e branco.

Foram dias bons, dias ruins, dias de gols, taças sendo erguidas, críticas sendo ouvidas. Tenho certeza que Leonardo Silva sente falta até das reclamações vindas da torcida mais chata do mundo. Como diria Dadá Maravilha, Leo Silva não é eterno, sua história será. A 10 partidas de alcançar a marca de 400 jogos pelo clube e ganhar a tradicional placa comemorativa, comemorei a pausa nos 390. Leo merece mais que um pequeno pedaço de metal que irá enferrujar com o tempo. Que façam uma fila de ídolos na escada do vestiário do Mineirão para aplaudirem Leonardo Silva pisando no gramado do estádio pela última vez. Reinaldo, Éder Aleixo, Victor, Marques, Diego Tardelli e tantos outros, gigantes como o nosso Leo. Festa completa com mosaico personalizado e o telão do Mineirão exibindo a comemoração que acaba com os socos no escudo que ele honrou tantas vezes. Que os deuses do futebol permitam essa despedida, Leo. Você merece, nós merecemos.

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