Ídolo, campeão e um marco dos anos 90. Wilson Gottardo não é só mais um zagueiro que teve a honra de vestir a camisa do Cruzeiro. É o ícone de uma década marcada por uma sequência de títulos que teve seu ápice em 1997, com o segundo título da Libertadores do clube celeste. Chegou ao Cruzeiro logo após jogar pelo Fluminense e tão logo teve oportunidade, se firmou como titular. Ficou no clube celeste até 1998, conquistando além da própria Libertadores, dois títulos do campeonato mineiro.
E qual a melhor forma de começar o #DeusMeDibre se não uma entrevista exclusiva com o xerife celeste, responsável não só pela emblemática foto da taça mais cobiçada da América sobre a cabeça, mas por vários jogos de raça, habilidade e comprometimento.
Nesse rápido bate-papo com Gottardo realizado no dia 2 de maio, antes mesmo da goleada do Cruzeiro sobre o Vasco por 4 a 0, abordei assuntos desde os bastidores de 1997 até a visão dele sobre o Cruzeiro atual e o caminho da Libertadores. Falamos sobre Dedé, Mano Menezes, Adilson Batista e até sobre seu possível futuro como treinador do Cruzeiro. Será?
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Vou começar perguntando para o ídolo e ex-jogador, como foi sua chegada ao Cruzeiro? Você não jogou a fase de grupos (vinha de contusão após passagem pelo Fluminense, chegou a pedido do técnico Paulo Autuori), então como foi acompanhar aquele momento difícil, que o time só engrenou nos últimos jogos?
O Cruzeiro fez uma proposta (Pro Fluminense) e pra mim foi motivo de orgulho, já tinha trabalhado com o Paulo (Autuori) no Marítimo (Portugal) e no Botafogo. A proposta foi aceita e cheguei e já estava acontecendo a primeira fase da Libertadores. Passei a jogar o estadual e acompanhando a fase de grupos, que é dificílima. Da minha parte eu gostaria de estar disputando desde o primeiro jogo, mas foi uma fase difícil pro Cruzeiro superar, mas superou pela equipe que tinha e pelo brio dos atletas. Eles estavam fechados, seria mais um obstáculo a ser superado. Com o comando técnico muito bem feito pela comissão técnica.
E quando o Paulo Autuori te colocou no time, como ele propôs que vocês deveriam jogar? O que ele via de ponto forte naquele elenco?
Aquele elenco passava por alguns ajustes, precisava de ajustes e mais organização de jogo mesmo. Eu (falando da entrada no time) sempre fui um zagueiro que cantei o jogo todo, tanto na orientação da marcação, quanto na saída de jogo, na antecipação da jogada. Quando o zagueiro joga mudo, o time perde muita qualidade. O zagueiro que joga calado compromete o sistema defensivo. Exemplo, uma bola espirrada e não tem atacante atrás dela, se o zagueiro ou o goleiro não tiver atento, o zagueiro da um chutão, as vezes é só dominar, recuar com o peito para o goleiro, eu vejo isso acontecer e cedendo um lateral, uma bola parada. Zagueiro tem que ser muito participativo. O zagueiro é o coração da equipe, o que faz a equipe bombar mesmo, sabe?!

Gottardo ganha pelo alto, no jogo contra o Sporting Cristal. Foto: (Cruzeiro/Arquivo)
Em 1997 o Mano Menezes fazia estágio com o Autuori e viveu parte daquela Libertadores de perto. Como era a convivência com o Mano? Você chegou a compartilhar com ele alguma ideia na época sobre futebol ou outra coisa?
Não. Não tive contato com ele. Peguei mais o final da passagem dele. Eu cheguei já tendo que fazer avaliações, treinamentos específicos, adaptações com o Paulo (Autuori) e o Gilvan (preparador físico). Só vejo as fotos da época, do Mano com mais cabelo e magrinho (risos).
EU SÓ ME PREOCUPAVA MESMO EM TRABALHAR, DAR BONS EXEMPLOS, NUNCA ACEITAR UMA DERROTA MESMO QUE MERECIDA.
Sobre as lideranças de grupo, você sempre foi exemplo, maioria das vezes capitão por onde passou. Foi assim em 97 também?
Esse é o detalhe, eu nunca me preocupei em ser capitão ou ser líder de grupo. Eu só me preocupava mesmo em trabalhar, dar bons exemplos, nunca aceitar uma derrota mesmo que merecida. Não aceitar o “porque” que mereceu (a derrota). Em alguns momentos sacrificar vida pessoal pelo trabalho, isso eu também eu me arrependo, não precisava ser tanto. E é só isso. Exemplos para que possam servir pra outros. Alguns treinadores entendiam isso na época. Capitão não é só escolher lado do campo ou a bola. Capitão tem diversas atribuições. Tem que ser exemplo, tem que ter caráter, saber suas obrigações e seus deveres. Não é só botar a faixa de capitão, levantar o troféu e fazer foto. Eu independente da faixa ou não procurava agir dessa forma. O Paulo (Autuori) fez opção e foi motivo de orgulho pra mim.

Palhinha em ação. (Foto: Cruzeiro/Divulgação)
Quais outros naquele elenco eram esses jogadores de personalidade?
Palhinha era esse tipo de jogador. Já tinha experiência e campeão pelo São Paulo, líder nato também. Palhinha jogava muita bola, talentosíssimo. Lembro de alguns lances dele marcando e dando até carrinho pra marcar a bola. Palhinha foi um exemplo positivo pra mim, demais.
Por ter superado uma classificação quase traumática, você acha que o grupo adquiriu experiência e ficou o que a gente chama de “cascudo”?
Por etapas. Você queimou essa etapa (primeira fase), você começa outra praticamente do zero, com uma leve vantagem de fazer um segundo jogo em casa, pode-se dizer. O perigo ta exatamente nisso, se o Cruzeiro acreditasse, naquela época, que da forma que ele arrancou a classificação para a segunda fase ele achasse que seria da mesma forma, que se sustentaria que as outras classificações seria assim também, no caso ‘ah, o primeiro jogo tudo bem, não deu certo, mas a gente vai arrancar de novo no segundo jogo, a gente vai buscar assim’. Então a aplicação tinha que ser em todo jogo, não tinha que ter nenhum tipo de relaxamento. Foi o que aconteceu naquela Libertadores (1997) não tinha nenhum jogo fácil, todo jogo foi muito equilibrado. Na época eu via que o time do Cruzeiro tinha alguns jogadores jovens, apesar de serem campeões da Copa do Brasil de 96, já tinham experiência, mas eram jovens. Tinham vários garotos da base, jovens. Até o Dida era jovem.
O que esse time de hoje (2018) tem em comum com o de 97? E o que tem de diferente?
É bem diferente porque são outros tempos, é difícil de comparar as décadas. Mudou muito o futebol, os treinamentos são diferentes. A gente treinava muito, até demais, os conceitos da fisiologia eram diferentes. O que a ciência tinha de mais moderno o Cruzeiro fazia, mas hoje já mudou muita coisa. Os treinamentos de hoje são bem cronometrados. Após os treinamentos você faz exames. Ta muito científico e os métodos são bem diferentes. A própria informação dos adversários, tem empresas especializadas pra trazer essas informações. Você fica sabendo muito. Não tem como um atleta ir pra campo hoje, sem saber o que fazer. Naquela época, era durante o jogo que você tomava decisões.
O ponto forte do time do Mano Menezes é a defesa consistente, que leva pouco gols e joga mais fechado, sem se expor tanto. Como você, que foi xerife do Cruzeiro, analisa a defesa de hoje?
Analisando os zagueiros eu fico bem à vontade. Os zagueiros do Cruzeiro são excelentes. Analisar o sistema defensivo é outra parte. Os zagueiros precisam organizar o sistema defensivo, precisam organizar o posicionamento dos volantes e dos laterais, linha de impedimento. É uma constante. O Mano tem um esquema que ele sempre gostou muito, que é o 4-2-3-1 e agora ele tem uma variação desse esquema e mudou a formação pela característica dos seus jogadores. É um benefício que ele tem feito pelo time.
NÃO TINHA CABIMENTO, NÃO SE JUSTIFICAVA A AUSÊNCIA DELE (DEDÉ) NA COPA.
Vê alguma semelhança sua com o Dedé, que é considerado um xerife e ícone desse time?
Estilos diferentes, mas ele é dos grandes zagueiros que o Brasil tem no momento. Infelizmente ele foi perseguido pelas lesões. No meu modo de ver, se não fosse por algum problema extracampo ou alguma coisa assim, Dedé era pra fazer parte da Copa de 2014. Não tinha cabimento, não se justificava a ausência dele na Copa. Em alguns amistosos (da seleção) ele ficou muito exposto, principalmente pelo lado direito do Daniel Alves que deixava ele muito exposto, e o Dedé precisou de fazer algumas intervenções por ali. E futebol de seleção, você joga contra outra seleção, então o atleta do outro lado percebe e explora melhor os pontos fracos. É um zagueiro que no meu time seria titular absoluto.

Gottardo disputa bola com Oséias pelo brasileiro de 98. Foto: (Agliberto Lima/Estadão)
Agora pergunto para o treinador Gottardo, como está sua carreira? Seus planos?
Eu fiz a licença A da CBF, agora tenho a licença C, D e A. Mas eu decidi não trabalhar mais em clubes que não oferecem o mínimo de estrutura. Não quero mais ter que pagar pra trabalhar. Eu quero algum clube que tenha propósito, seja qualquer divisão, A, B, C, D. Da D quero subir pra C, da C pra B, da B pra A. Que tenha propósito de brigar por algo. Não quero ir pra algum clube que eu seja treinador, gerente, diretor, nutricionista, fisioterapeuta, não quero mais isso daí. Então eu preferi aguardar alguma proposta diferente. Até penso em trabalhar por um tempo como auxiliar, se surgisse uma proposta, muito mais voltado para o sistema defensivo do time, para os zagueiros, até gostaria de ter essa experiência. Ainda não surgiu, quem sabe num futuro próximo?
Como treinador o que você faz para manter um grupo motivado e que entenda as suas ideias?
Olha, duas coisas que eu penso que são fundamentais: honestidade e sinceridade. Parece que são idênticas, mas não são. Jamais mentir para o atleta em qualquer circunstância. Mesmo que seja na atitude e não seja com palavras, não ser falso com jogador. E trabalhar bastante. Trazer para o jogador a importância de cada um e a responsabilidade de cada um. Todos são responsáveis, mas o atleta também é. E ele só fica responsável quando ele adquire confiança no seu trabalho.
E o contrário, além da transparência, o que um treinador não pode fazer? E antes de você responder essa, eu não sou treinador, mas sei uma coisa que não se pode fazer de jeito nenhum: cortar o melhor zagueiro do time do jogo da final do Mundial de Clubes (risos).
Exato! (risos) Eu não fui cortado só da final, eu e mais oito fomos cortados há dois meses da final, por um motivo inaceitável, pelo menos o meu motivo. Mas a lição ficou.*
*Gottardo foi cortado da final do Mundial de Clubes pelo então técnico Nelsinho Baptista e sempre deixou explícita sua mágoa com o que considera ser uma “decisão injusta”.
Treinar o Cruzeiro e ser ídolo também como treinador é um sonho que você vê como possível?
Gostaria sim de ter oportunidade! Torço para os treinadores que me antecederem, nesse caso, caiam pra cima. Que consigam contratos milionários na arábia, na china, em campeonato europeus (risos).
ESSA INICIATIVA, ESSA AGRESSIVIDADE PRA BUSCAR A MELHOR APRESENTAÇÃO E BUSCAR A VITÓRIA É FUNDAMENTAL PARA QUE O RESPEITO ACONTEÇA.
Você fez estágio com o Adilson Baptista que, apesar de não ganhar nenhum título de expressão (foi vice-campeão da Libertadores em 2009) é reverenciado por muitos torcedores até hoje.
Adilson é um dos grandes zagueiros que vi jogar e dos grandes treinadores também. Presenciei o trabalho dele, é um excelente treinador. É questão de tempo para ele ter uma grande conquista, pode ter certeza disso. Vai chegar o momento em que ele vai conquistar uns títulos pela frente.
Agora a última pergunta, que vale muito: o que esse Cruzeiro precisa pra ganhar a Libertadores de 2018?
Ah, eu penso que o Cruzeiro tem que ter a iniciativa pra isso. A todo instante. E não tô falando em atacar o tempo todo, a iniciativa é fazer com que o adversário sinta que não tem o domínio do jogo. Que ele (o adversário) pode ter até mais posse de bola, envolver em alguns momentos, mas que não tem o domínio do jogo. Essa iniciativa, essa agressividade pra buscar a melhor apresentação e buscar a vitória é fundamental para que o respeito aconteça.