E o Daniel foi desfilar seu futebol no céu. Partiu muito novo, no auge dos seus 24 anos, por motivos ainda desconhecidos. O que não ficou desconhecido foi a brutalidade do assassinato – que não cabe aqui eu reviver. O que aconteceu para ceifarem a vida de um garoto com tanta crueldade?
Conheci o Daniel bem novo, se não me falhe a memória com 14 anos, promissor, talentoso, meia com habilidade. Um garoto tranquilo, de boa família que estava sempre ao seu lado dando total apoio, uma realidade não muito comum no futebol de base, onde grande parte da garotada vem de famílias carentes, com uma carga pesada de problemas.
E é justamente sobre isso que se trata esse texto.
Quando falamos “categoria de base”, jamais podemos esquecer que estamos tratando de crianças, que deixam para trás família, amigos, lar, tudo em busca de um sonho. Sonho esse que muitas vezes, não se tornam realidade. Muitas vezes mesmo. O que nós vemos são os poucos que conseguem se firmar na “prateleira de cima” do futebol.
O mestre Chaffit Felipe falava: “É mais fácil se formar médico que se tornar jogador de futebol”.
Essa meninada que passa dias, meses e anos, treinando duro e arduamente, não possuem nenhuma garantia que vão ser jogadores profissionais de clubes grandes e com salários astronômicos. Imaginem isso na cabecinha ainda em formação dessas crianças? Lembrando sempre, que para muitos, se tornar um atleta do futebol é salvar a família da miséria. Esses garotos carregam uma responsabilidade e um peso enorme em suas costas, coisa que nenhuma criança ou adolescente deveria carregar.
Perceberam onde eu quero chegar?! Se não, vamos lá.
Vendo todo esse quadro apresentado: treinamentos em dois períodos, cobranças de treinadores, de familiares e a expectativa de se realizar já os faz trazer consigo uma carga emocional pesada. Ansiedades e medos provenientes de pais desequilibrados, de famílias desestruturadas. Essa agonia da incerteza de não saber se jogarão futebol por um grande clube, tudo isso, muitas vezes, é demais para essa turminha.
“E tem como aliviar essa peso?” vocês podem me perguntar. Até tem, mas é preciso que os clubes formadores entendam que além de formarem o atletas, eles tem a responsabilidade de torna-los seres humanos descentes, de educa-los, para que na fase adulta, sejam homens responsáveis, conscientes e até mesmo “estudados”. Com isso, independentemente de jogarem futebol, ou não, terão a chance de lutar por um futuro.
Os clube precisam assumir, sim, o papel de pais e mães dessa garotada. Cuidar, vigiar, zelar, mostrar que a profissão é maravilhosa, mas que é cheia de caminhos perigosos.
Vamos a um caso específico que eu pude vivenciar no meu cotidiano de Toca I: não vou revelar o nome do atleta, por que o santo pouco importa, mas o milagre era o que impressionava. Todo dia me aparecia na porta de um CT um mulherão, devia ter pra lá de uns 30 anos, parava em seu carro de luxo importado e ficava esperando a saída de um jogador… um garoto da base que tinha 15 anos (!), mas que praticamente já era uma realidade como jogador.
Nem preciso ressaltar o crime aqui, certo? Corrupção de menor. E depois, convenhamos né?! Uma mulher, do tipo “modelo” já pensando em fazer o seu futuro era a realidade da situação. E o pior é que não se sabia o histórico dela, se era casada, comprometida ou envolvida em algo (criminosa nós já sabemos que era) e que colocava em risco a integridade de um garoto.
Para não alongar demais, me senti obrigado e fiquei responsável de “tocar”a pessoa da vida do guri – com o consentimento dos diretores, claro, por que o atleta.… provavelmente não entenderia os “porques” de tomar tal atitude. Bastou um papo rápido e objetivo na porta do CT e pronto, adivinha só?! Ela nunca mais voltou.
Mas antes os perigos fossem a “gandaia” e o “assédio” em cima desses meninos. Eles aumentam. Aos 16 anos os garotos assinam seus contratos de atletas profissionais, deixam de ganhar uma ajuda de custo do clube e passam a receber salários. Nesse momento começam a surgir os “grandes amigos”, aqueles camaradas que vão levar os meninos para as baladas, aqueles vagabundos que vão lhes apresentar o mundo das drogas, promoters do caos, “veiacos” que vão se aproveitar ao máximo dos jovens atletas. Sugam a saúde e o dinheiro.
E aí volto a questionar o papel do clube: a entidade tem que ter a responsabilidade ou ao menos tentar evitar que essas situações – que são mais comuns que vocês imaginam – aconteçam. E qual estratégia usar? É menos difícil do que vocês imaginam.
Depende de dois fatores: instrução e empatia. Os profissionais que trabalham nas categorias de base, além de exercerem o papel de preparadores físicos, treinadores, fisiologistas, nutricionistas, roupeiros, preparadores de goleiros, assessores de imprensa, supervisores, diretores e etc… precisam extrapolar e ir além da profissão que apresentam nos currículos.
Instrução: eles precisam e devem assumir o papel de tutores. Ensinar e educar, mais do que a tática ou o jeito certo de se cruzar na linha de fundo. É preciso instruir na vida, assumir por algumas vezes o papel de “tios”, “primos”, “padrinhos”, “papais” e “mamães”. Ser escola e exemplo.
Empatia: é preciso ter carinho. Desenvolver uma relação além da professor-aluno. Como eu disse e todos vocês sabem, esse jogadores crescem em ambientes muitas vezes insalubres, com pai ausente e tendo que enfrentar a realidade dura e cinza do mundo. Quando se tem amor, carinho e atenção, tudo fica mais fácil. Até mesmo o desenvolvimento no campo!
Vou aproveitar a nostalgia e falar da minha época de Toquinha, quando eu vi e vivenciei com Ricardo Drubscky, essa filosofia sendo implantada. Tivemos uma geração vitoriosa na base, de grandes jogadores se destacando. Enquanto esteve responsável pela diretoria da base celeste, Drubscky CUIDAVA da garotada. Um paizão que exigia essa postura de todos os outros profissionais. Infelizmente foi retirado para a chegada de Dimas Fonseca e… bom, o que aconteceu depois é assunto para um outro texto.
Voltando ao Drubscky, essa preocupação ajudou inúmeros garotos – que facilmente poderiam ter se perdido na longa caminhada – a de serem atletas profissionais.
Outro que também exerceu esse papel foi Bruno Vicintin, um paizão para a turminha. E isso, amigos, faz uma diferença gigantesca na vida dessa galera. São jovens, muitos carentes de afeto, afastados do convívio da família. Todos ali, sem exceção, gostavam de se sentirem protegidos e amados.
E antes que comecem a achar que eu estou falando de política e coisa do tipo, que fique claro: não estou colocando a culpa do que aconteceu ao jovem Daniel no clube formador, jamais! A culpa é do vagabundo, do bandido que cometeu tamanha covardia e maldade com outro ser humano. Não estou comparando o Daniel a garotos problemáticos – ele não era, pelo contrário, foi um menino que não deu trabalho nenhum em sua formação como atleta e sei que também teve sucesso como cidadão.
O assassinato do Daniel só deu a deixa que eu precisava para questionar a forma que andam tratando as categorias de base em todos os clubes do Brasil. O processo se profissionalizou de uma forma tão perigosa, que os meninos passam a serem vistos como mercadorias, gados sendo selecionados: ou dão leite ou vão pro abate. Entendo que o clube investe e quer retorno. Mas não custa, de verdade, tratar esses jovens de maneira digna, darem a eles orientações psicológicas, prepararem para os perigos da profissão que são inúmeros e vão além do campo. Fácil acesso ao consumismo, drogas, ostentação e muita gente maliciosa… tudo que pode acarretar no fim de um sonho. Isso é algo que definitivamente NÃO PODE ACONTECER
Prefiro acreditar que quando os pais entregam seus filhos, ainda imaturos, aos cuidados de um clube de futebol, esse se torna responsável não por formar só o atleta, mas também a pessoa, o cidadão.
Sobre o jovem Daniel. Que a polícia prenda os culpados pela barbarie que fizeram com ele, que sejam apresentados a sociedade, que sejam julgados e condenados.
Que os familiares encontrem uma forma de conseguirem paz em seus corações.
Rodrigo Genta e Stefano Poke